Ensaio sobre Vivarium (2019)
- Fórum do Campo Lacaniano de Florianópolis

- 27 de set.
- 3 min de leitura
O texto a seguir foi escrito e apresentado por Fernanda Cunha (Membro do Fórum do Campo Lacaniano de Florianópolis), no evento: Cine Divã, acontecido no dia 19/09/2025 no Auditório Elke Hering – Biblioteca Universitária Central UFSC.
Assisti a Vivarium pela primeira vez há alguns anos. Voltei a ele agora, pela segunda vez, para escrever este ensaio, hoje o vejo pela terceira vez, junto de vocês. Há sempre algo que nos captura com intensidade, seja no enredo, na estética ou nos personagens, para justificar que retornemos tantas vezes a um mesmo filme. E isso acontece comigo. A imagem de subúrbio americano sempre me deixou um tanto consternada, quando tudo está perfeitamente em seu lugar, sem diferença, sem lacuna, sem textura, e se torna uma maquete estéril daquilo que seria viver, me escancara o cinismo da sociedade de não olhar para além dos próprios muros.
O que chamo aqui de “epígrafe visual” se apresenta da seguinte maneira: Um cuco. Uma ave parasita que deposita seus ovos no ninho alheio. Os filhotes, ao nascerem, lançam para fora os outros, aqueles que seriam os legítimos, assegurando assim a própria sobrevivência, uma sobrevivência cínica. Quando vi essa mesma cena em um documentário científico no YouTube, a mesmíssima cena, parecia apenas “a natureza seguindo seu curso”. No filme, ao contrário, ela escancara a violência. No filme a tal cena não é apenas a natureza é o presságio daquilo que viria a ser o enredo, e pode ser uma metáfora daquilo que são ancoradas as dinâmicas de poder, compõem as relações humanas.
Em seguida, surge a promessa de felicidade. O casal visita um condomínio perfeito, “perto o suficiente, longe o suficiente”, com o slogan que garante: um para sempre, sempre perfeito, pleno, constante. No carro, a canção que ecoa diz em sua tradução: “Pare de brincar por aí, hora de se endireitar, melhor pensar no seu futuro”. O bairro, com suas nuvens artificiais, com suas casas idênticas, oferece a imagem de um ideal sem falhas. O que se anuncia é um futuro correto, domesticado, garantido e que renúncia qualquer subjetividade, renúncia qualquer desejo para que se possa ser alcançado.
Aqui podemos aproximar a história à “estética do liso” de Byung-Chul Han. O liso é a superfície sem rugas, sem cicatrizes, sem negatividade. Tudo otimizado, higienizado, uniforme. É a pele perfeita das imagens publicitárias, é a tela do smartphone que não admite manchas. O bairro de Vivarium é, por excelência, esse espaço liso: nada suja, nada mofa, nada escapa porque não tem saída para que se escape. Bom, diante algo que não tem saída, é preciso construir.
E o casal constrói, ora juntos, ora separados, ora rompidos. As ferramentas são poucas: algumas relacionam-se ao trabalho: Escada, pá, por exemplo, e outras com o consumo sem função: um celular sem sinal, um carro sem gasolina. Nenhuma delas significativas o suficiente para salvá-los da vida asséptica que é a vida nesse quarto personagem do filme: O subúrbio.
Bom, mencionei o quarto personagem, sem mencionar o terceiro: O Infans.
Um bebê que não tem linguagem, não tem mãe, não tem pai, não tem história. No filme é se reduz a condição para liberdade. Na crítica contemporânea: ao objeto de consumo, ao projeto narcísico ou ainda a uma vitrine para o espetáculo.

Sem raízes, sem linhagem. É ele quem dita o tempo da prisão e também da tal liberdade. O menino traz consigo o livro, as imagens fractais na televisão, e o ruído do som de pássaros. A mãe tenta decifrá-lo, dedicando-se à saída que encontrou: seria maternar? O pai: Cavar uma fuga solitária. Cada um preso à sua própria forma de lidar com o impossível que se apresentou. Presos ao subúrbio da repetição fechados à um circuito fechado, onde nada de novo pode surgir. Escadas não levam a lugar algum, o sol nasce e se põe no mesmo ponto, os morangos não têm gosto. A vida no “para sempre” é sem sabor, sem resto, sem diferença.
Ao final, ao enfrentar o filho que não é filho, e sim apenas objeto de liberdade, ela atravessa diferentes casas e vislumbra como outros lidaram: pelo choro, pelo sexo, pelo suicídio. Até cair no destino traçado: “Você é mãe, e ao final você morre”, nada sobra quando nada pôde-se construir.
O filme tenciona aquilo que é da ordem do ordinário e do aterrorizante. O que é de cada personagem e que outrora deveria permanecer oculto, vem à luz e ao retornar, causa espanto e horror. A violência, a raiva, o medo não encontram anteparo na artificialidade desse cotidiano apresentado. O horror invade a história lembrando que a promessa de felicidade, quando levada à um ideal, revela sempre seu reverso: o horror da concretização.
Ocupou-se a casa.O infans cresceu. Portanto a morte.
Fernanda Cunha
Membro do Fórum do Campo Lacaniano de Florianópolis

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